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sexta-feira, 12 de setembro de 2014

(Des)Ajustamento na Vida do Insuficiente Renal Crónico



Quando alguém é confrontado com o diagnóstico de doença renal crónica sente-se normalmente perdido, inseguro e cheio de medos, como se deambulasse devagar e irregularmente sobre um trilho, que não conhece. A sua realidade modifica-se e tem forçosamente de se adaptar a uma nova realidade, a uma condição de vida com novas prioridades e novas obrigações.
Existem assim quatro fatores fundamentais para caracterizar a doença renal crónica (Olim, 2012):
Tempo: a doença prolonga-se no tempo e consome tempo (internamentos, tratamentos), que tem de ser forçosamente gerido.
Gravidade: não se trata de um episódio agudo que pode naturalmente ser curado. É uma doença incurável, irreversível e, por isso, continuamente investigada, podendo surgir incerteza quanto à terapêutica medicamentosa a adotar.
Ambivalência: resultado da impossibilidade do doente prever as situações de risco, o que lhe gera instabilidade.
Imprevisibilidade: pode aparecer em qualquer etapa do ciclo de vida do indivíduo e a sua incidência na população é cada vez maior.
Perante este diagnóstico e a obrigatoriedade indefinida de um tratamento, muitos doentes reagem com choque, desespero e angústia. Nestas situações, o medo acaba muitas vezes por bloquear as suas ações e a assimilação de novas indicações fica altamente comprometida.
É frequente esquecerem o que lhes foi dito relativamente à sua doença ou ao tratamento, numa primeira fase, e existem mesmo pessoas que afirmam não se sentirem suficientemente informadas sobre a sua situação clínica. Não é por acaso. Esta reação está relacionada com o medo. O medo do desconhecido, e de vir a saber mais sobre algo que se receia, faz desencadear um processo defensivo. Esta situação poderá também estar relacionada com o síndrome urémico, que numa fase mais avançada pode provocar confusão mental. O sentimento é absolutamente avassalador, principalmente, quando não houve uma preparação, porque a doença surgiu de uma forma súbita, e a IRC adquire uma conotação ainda mais negativa, de grande revolta.
A revolta, a negação, a alienação funcionam como escudos protetores utilizados por cada pessoa para fazer face à experiência traumática de se tornar doente, submetido a um tratamento intemporal obrigatório. Nesta altura, muitos preferem fechar-se na concha da doença e do tratamento e prescindem por completo das outras dimensões da vida.
Outro aspeto importante que potencia estes sentimentos é o facto de muitas pessoas entrarem em diálise e não terem sintomas, em parte pelo investimento clínico que se faz em termos de fase pré-diálise. Nestes casos, torna-se difícil perceber os ganhos da diálise. Quando as vantagens do tratamento não são facilmente percetíveis o cenário torna-se ainda mais desanimador.
A adaptação à doença e ao tratamento é um processo dinâmico, marcado por flutuações psicofisiológicas, relacionadas tanto com sintomatologia física, nomeadamente fadiga, prostração, mal-estar geral, como com alterações emocionais, nomeadamente de humor e irritabilidade. É um percurso instável marcado por avanços e recuos, fruto da forma como o sujeito se relaciona consigo próprio e com os outros.
Podemos afirmar que a adaptação à doença/tratamento não é linear e é frequentemente acompanhado por sentimentos de angústia e/ou ansiedade, que fazem parte da estrutura defensiva de cada um face à experiência que estão a vivenciar. No entanto, é preciso estar atento a estes sentimentos, perceber se se arrastam no tempo e se assumem o controlo da vida desta pessoa. Caso isso aconteça, cabe aos familiares, amigos e ao próprio doente (se tiver consciência desse estado) alertar a equipa de tratamento para esse fenómeno. Não é suposto que o tratamento nos tire vida, mas sim que nos dê vida.

A depressão surge no contexto das diversas perdas a que o doente renal crónico está sujeito. A perda de estatuto ou de papel na família ou até mesmo na sociedade, principalmente ao nível profissional. A debilidade física associada a um comprometimento psicológico tem implicações ao nível da autoestima, gerando dúvidas e inseguranças. Muitos doentes verbalizam sentir-se em défice não só perante si próprios, mas sobretudo perante os outros. O desconforto para consigo próprios projeta-se na relação com os outros, traduzindo-se muitas vezes em falta de tolerância. Intolerância que se acentua no contexto familiar e nos centros onde realizam o tratamento. No fundo, quando não se está bem consigo próprio, não se é capaz de estar bem com os outros, normalmente aqueles que nos são mais significativos. É importante que se entenda e aceite que ninguém é culpado pelo surgimento da doença, nem tão pouco do tratamento, e que a melhor maneira de ultrapassar a situação é aceitar a nova condição de vida e escolher viver bem com o tratamento, envolvendo-se nele e tornando-se parte ativa. Ter consciência é tornar-se mais responsável, com maior capacidade de decidir e, por isso, mais consciente e competente em relação às suas escolhas.
“...Podemos afirmar que a adaptação à doença/tratamento não é linear e é frequentemente acompanhado por sentimentos de angústia e/ou ansiedade, ...”
O permanente conflito entre autonomia e dependência é outro dos aspetos que integra o processo de adaptação. Dependência em relação à máquina, ao tratamento, aos cuidadores e independência porque há a expectativa por parte dos outros e dos próprios pacientes de quererem comportar-se como pessoas saudáveis, não sujeitas a todos estes condicionalismos da doença. Por um lado, é se doente mas, por outro lado, há uma vontade por parte de todos em fazer uma vida como se não o fossem. Muitos doentes abusam dos líquidos e não são rigorosos, nem com a dieta, nem com a terapêutica que devem seguir. Este tipo de comportamentos põe em causa todo o plano de tratamentos e coloca o doente numa situação de risco de vida.
O confronto diário com esta realidade leva a que cada um questione de forma profunda a doença e o tratamento. “Porquê, porquê a mim?” Perguntas sem resposta que provocam um desconforto interior enorme e aumentam ainda mais o sofrimento. Sofrimento que é potenciado pela “Visão espelho”. A proximidade com outros doentes com quem se faz tratamento potencia a dor vivenciada por cada um. Na dor dos outros veem a sua dor, o sofrimento dos outros reforça o seu sofrimento. A contiguidade criada pelo lugar onde todos fazem o tratamento, naquele dia, àquela hora, no mesmo espaço força uma proximidade que, na maior parte das vezes, é difícil de enfrentar.
Tornar-se doente renal crónico é, assim, uma experiência única e intransmissível, em que cada pessoa precisa de um período de adaptação, com tempos diferentes para cada pessoa. Não podemos escolher ter ou não a doença, mas podemos escolher a maneira como vamos vivenciá-la, os sentimentos, os pensamentos, as reações, a espontaneidade e, fundamentalmente, podemos escolher ter esperança. Escolhe-se ser escravo ou herdeiro de uma história, de uma doença, de um tratamento ou de uma vida.
Marta Freitas Olim Assistente Social do Hospital Santa Cruz

Revista NEFRÂMEA No 168
ANO XXXII Janeiro/Fevereiro/Março 2014
 fonte: Portal da Diálise.

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